domingo, outubro 31, 2010

A ZONA onde vive alguém que amamos, alguém de quem temos particular proximidade, está sempre acesa, viva, buliçosa, habitada, como se houvesse um coração permanentemente reflectido nas fachadas dos seus edifícios. Dia e noite, sempre aquela cor de chama que não fenece, ondulando no ar macio e denso.

sábado, outubro 30, 2010

NO BARULHO DO CENTRO comercial, espero que EMR e DB surjam no tropel das vozes. Sei que virão, mais tarde ou mais cedo, que irromperão da sombra, com os seus rostos deslizando por entre risos, acenos, conversas, olhares radiosos em cada passo do caminho para a eternidade. Virão como barcos sulcando o tempo que lhes falta viver.

sexta-feira, outubro 29, 2010

O QUE ALTERA a nossa vida é o estudo. Torna-nos melhores, mais responsáveis, mais credíveis, mais exigentes, mais humildes. Não fora assim e não valeria a pena. Para que os seus efeitos sejam permanentes em nós, o estudo deve acompanhar-nos em todas as idades, sob orientação superior, de forma sistemática e metódica.

quinta-feira, outubro 28, 2010

PODIA TER NASCIDO, mas não nasceu. LMP seguiu um caminho e eu segui outro. Nunca se saberá como seria. Poder-se-á calcular que teria olhos verdes, ou castanhos, e bochechas redondas de pele rósea, mas nunca haverá certeza. Talvez gostasse de correr atrás de pássaros. Talvez viesse a ser alguém. Como outros infindos milhões que ocupam o vazio.

quarta-feira, outubro 27, 2010

SIGO POR ENTRE paredes iluminadas, através de um corredor cujo fim não vislumbro, e à medida que avanço vou recebendo a luz que me invade como um vento pressionando as têmporas. É como se não houvesse distância entre o ponto de que parti e o ponto para que me dirijo, mas caminho, mesmo assim. Não desisto da expectativa de chegar.

terça-feira, outubro 26, 2010

HÁ DE VIR A PALAVRA para nos levar ao âmago de outras vias e meios, para nos redimir da indiferença cavada no silêncio negro. Há de vir, branca e solta, para nos perdoar o ermo onde depositámos a alma, para nos resgatar ao medo que anuncia a loucura. Há de vir a palavra, inteira, e possuir-nos na água do recomeço.

segunda-feira, outubro 25, 2010

“SÓ O AMOR liberta o Homem da sua natureza”, escreveu Mircea Eliade. E deve ser por tão pouco amor existir que a barbárie continua a fazer parte do dia a dia das nossas sociedades. De manhã à noite, ofendemos, amesquinhamos, humilhamos, ameaçamos, roubamos, agredimos, matamos e deixamos matar. Com sorrisos e vénias.

domingo, outubro 24, 2010

O NOSSO UNIVERSO está para o conjunto formado por biliões de outros universos como o Sol está para a galáxia, como Gibraltar está para o planeta, como a minha janela está para o país, como um grão de areia está para a praia. A soma cósmica é de uma tal grandeza que não pode ser conhecida, nem compreendida. Só imaginada na sua pequenez.

sábado, outubro 23, 2010

HÁ QUEM não viaje para resistir ao mundo, para se contrair, para se entrincheirar, para se encolher e enquistar, não podendo deixar de se agarrar ao sítio a que pertence; e há quem viaje para se disseminar em paisagens novas, para se perder, para se confundir, para aprender e crescer na busca do que não tem limites, esquecendo-se de onde vem.

sexta-feira, outubro 22, 2010

O ODOR das roupas é o que recordo. Odor a terra seca (por vezes molhada, ou simplesmente húmida), que vinha suspenso no sol. Depois, corríamos atrás de uma bola ou coelho e não pensávamos mais naquilo enquanto fosse dia. Era difícil discernir os tempos que viriam, mas quando a noite chegava o odor do holocausto voltava a instalar-se nas roupas que nos cobriam.

quinta-feira, outubro 21, 2010

A ESCRITA ENCHE o tempo da vida, como quando dormimos, sem nos darmos conta. Faz as horas e os minutos sobre os quais avançamos independentemente do que sucede à volta. Traz significado aos gestos, às decisões, aos imprevistos. Contém em si o gérmen de todas as explicações. Está sempre em busca de mais significado, mais organização, mais densidade.

quarta-feira, outubro 20, 2010

POSSO SUPORTAR um dia sem comer, sem beber, sem dormir, sem amar, mas não suporto um dia sem o alimento de escrever. Não dou por terminados estes apontamentos porque não sei o que me aconteceria a seguir. A escrita tem qualquer coisa de físico, de desafio, de sentido, que me impede de prescindir do seu uso. Por pouco que seja, é muito.

terça-feira, outubro 19, 2010

TOMAR uma refeição numa esplanada à beira-mar é trazer a alma lavada de pesos, confusões, traumas, ressentimentos, mágoas, tristezas. Enquanto comemos, o mar bate na pedra e refresca-nos, liberta-nos, dota-nos de um vigor redobrado, como se nos sacudisse as peles fundas e dissesse: alegra-te, ó pobre, aceita este meu azul imenso.

segunda-feira, outubro 18, 2010

ESCREVER UM ROMANCE é a forma de viver o que não se viveu, com a vantagem de as coisas acontecerem conforme a nossa vontade e permitirem o conhecimento das consequências das decisões que tomamos sem que destas decorra qualquer efeito palpável sobre a nossa vida. O laboratório perfeito.

domingo, outubro 17, 2010

ENTREI numa frutaria, vi romãs e lembrei-me que EMR as apreciava muito. Comprei quatro e fui entregar-lhas de imediato. Cheguei à porta da sua casa e telefonei a sugerir que viesse ter comigo, o que fez a correr, num saltitar leve, sob a chuva miúda. Quando verificou o que eu lhe trazia, sorriu com grandeza, abraçou-me, beijou-me e desapareceu de felicidade nas suas romãs.

sábado, outubro 16, 2010

O FIO das suas lágrimas corre ainda sobre a terra, como se tivesse a missão de lembrar os crimes que a todo o momento vamos praticando no planeta, por dinheiro, por inveja, por ciúme, por vingança, por suspeita, por roubo, por necessidade, por contrato, por conquista de território, por motivo nenhum. O fio das suas lágrimas corre ainda.

sexta-feira, outubro 15, 2010

É PRECISO dizer de novo, acrescentar sentido às palavras, seguir sons por revelar, adivinhar matizes, pressentir o que vem, nada rejeitar, coisa alguma deixar para trás. É preciso continuar as vozes que nos agitam, com olhos reinventando as luzes da estrada onde nasce o nevoeiro e termina o mar. É preciso apontar o dia de não desistir.

quinta-feira, outubro 14, 2010

DESPI-ME peça a peça, farrapo a farrapo. Libertei-me de expectativas. Desfiz-me da quinquilharia que havia nas minhas substâncias e formas. Afastei-me do ruído, do frenesim, da agitação oca, da amálgama inerte, da esperança vã. Decidi ficar apenas com a escrita. Que me permite não ter outras necessidades.

quarta-feira, outubro 13, 2010

RCL dirige-se para GSV, debruçando-se sobre a mesa a conversar. GSV está sem paciência e diz-lhe que se vá deitar. Mas a conversa não termina. RCL faz mais perguntas, quer combinar coisas para o dia seguinte, ao que GSV lhe ordena que siga para a cama sem demora. Depois de ainda tentar esclarecer dúvidas, RCL desiste, por fim, e obedece.

terça-feira, outubro 12, 2010

A ESCRITA REQUER abandono, temperança, lentidão, descida aos fundos, paciência, desencontro consigo. Não convém que se precipite para não perder o alcance dos assuntos que devem merecer a sua reflexão. E eu que vivi anos com a ideia de que a principal competência da escrita era contar. Contar a quem e para quê?

segunda-feira, outubro 11, 2010

O FIM DO DIA é quando nada se ouve num raio de quilómetros. Quando o céu cinzento envolve as palavras da primeira à última, resumindo tudo à pele esbranquiçada sob as roupas. E o frio contorcendo-se lá fora nas ruas sem dono. Assim se explica que o relógio atrase. Mais aquele lampião observando quem não chega.

domingo, outubro 10, 2010

O MAR ESTAVA tão bravo que o sal enchia o ar de brancura e claridade. A espuma crescia como se alguém tivesse derramado uma gigantesca lata de tinta branca sobre praias, rochedos, vegetação baixa. Nada de gaivotas, que o vento as levara, as desviara da rota. O bramido das ondas ocupava toda a terra.

sábado, outubro 09, 2010

CADA UM se resume a uma composição genética resultante da vontade de alguém se tornar maior, superando-se, prolongando-se no tempo. É um fardo que herdamos. Um gene que visa o futuro, com a pretensão de incarnar o indestrutível e o eterno. Esta fome de ilusão que não sacia.

sexta-feira, outubro 08, 2010

QUÃO CINZENTO pode ser o verde da minha alma nos dias anoitecidos em que o vento ruge na vidraça das janelas como numa visão sem idade. Saio em busca de encontrar o nexo do que me compromete, mas volto, com mais cegueira, mais evidência de vazio, à casa humedecida de bátegas que a tristeza escorre por mim.

quinta-feira, outubro 07, 2010

VOU NA ESTRADA, penso em EL e desintegro-me por dentro, enquanto CB me vai acalentando na sua trompete com dedos de piano tremeluzindo. Passaram anos sobre a carnificina, mas é como se a sua ameaça estivesse à espera num beco adiante para nos tirar a vida de novo. Aranjuez arde em mim, que não falo, só vejo.

quarta-feira, outubro 06, 2010

O QUE ME CHEGA aos ouvidos, todos os dias, quando vou na rua, quando almoço num restaurante, quando faço compras num supermercado, nada tem a ver com o que naquele momento penso ou sinto. É como se a minha língua fosse outra, como se a minha viagem apenas tivesse sofrido, por acidente, um ligeiro desvio na sua rota...

terça-feira, outubro 05, 2010

DÁ QUE PENSAR VER o mar azul revolvendo-se em ondas de esmeralda, como se apelando às lágrimas. Verifiquei-o, há dias, quando tomava café numa esplanada à beira das pedras contra as quais as vagas rebentavam. Não precisei de anotar a ideia. Bastou a visão.

segunda-feira, outubro 04, 2010

VOU ENTRAR na fase de me perder e ser feliz. Estou perto de subir a escada para aquela janela onde desatarei a escrever numa loucura por cima de tudo o que acontecer. Passarão horas da luz ao vazio e à escuridão sem que eu me aperceba do que há em redor. A não ser daquele tropel de vozes com olhares esgueirando-se por incontáveis frinchas.

domingo, outubro 03, 2010

O MISTÉRIO que subsiste é o da relação indomável e lancinante entre o ser criador e o ser criado. Não há distâncias, nem tempos ou universos que o suplantem. Nem medos, perigos, desejos, ameaças ou poderes, por mais insanos que se revelem. É o mistério das infinitas distinções entre dois seres, que se continuam, para que um e outro sejam o mesmo.

sábado, outubro 02, 2010

NUNCA pensei que a escrita pudesse trazer tanta felicidade. Não foi para ser feliz que me dediquei a ela. Comecei a escrever para contar o que tinha dentro de mim e não para encontrar a felicidade em romances. Afinal, não contei grande coisa e a felicidade acabou por me atingir de uma forma que eu estava longe de merecer.

sexta-feira, outubro 01, 2010

A ESCRITA VAI-SE contorcendo dentro de si própria, por entre palavras que se entrelaçam em múltiplos significados, formando um contínuo de sons e sílabas que dão corpo a frases improváveis, mesmo quando dormimos, num processo de acumulação e amadurecimento cujo desfecho é difícil antever.