quinta-feira, abril 30, 2009

Fugiu. Um dia, acordámos e verificámos que FCH tinha fugido. Foi um alarido geral. Toda a gente opinava sobre as causas e as consequências do seu desaparecimento. A casa ficou vazia de tanto se falar na sua proeza. Anos depois, FCH ainda carregava no corpo as marcas dessa fuga, quando subiu ao topo de um prédio com mais de quinze andares e do alto do seu precipício se pôs a acenar a quem passava na rua…

quarta-feira, abril 29, 2009

Não são anjos, são cardos os sonhos que nos visitam pela calada da noite, quando nos chega o eco dos tiros, a premonição dos gritos, o medo em cima do medo, a fome em cima da fome. Perguntamos, investigamos, tentamos perceber, mas não obtemos resposta. Em toda a parte, viram-nos a cara, dizem que não querem saber, que talvez mais tarde. E os ponteiros do relógio, implacáveis, prosseguem a sistemática devora do tempo que falta escrever.

terça-feira, abril 28, 2009

O amor, afinal, é fácil de perceber. Ama-se a pessoa na qual nos revemos. Quando a encontramos, nunca mais nos separamos dela. E passamos a ter ao nosso alcance a medida completa do mundo. Então, “os outros” tornam-se “o outro”… e não há espaço para mais nada, nem ninguém. Só esse raio fulminante, essa lança em riste, apontando ao centro do caos, onde reside o momento inequívoco e claro.

segunda-feira, abril 27, 2009

Se nos dedicamos às minudências do quotidiano, ao açúcar, manteiga, beterraba, preço do autocarro, cor da casa do vizinho e outros assuntos do género, ficamos sem tempo para a reflexão, para o estudo, para a investigação. Se nos entregamos ao pensamento e à análise das coisas do espírito, acabamos por nos isolar e distanciar do comum dos cidadãos. O meio-termo entre estas duas formas de estar não parece conduzir a lado algum.

domingo, abril 26, 2009

Nascer não tem nada, não é nada, não significa nada. Nascer é ficar para aqui sem sentido à espera que nos venham buscar, nos abracem, nos falem. Depois, choramos e começa tudo a ganhar nexo. Se não derramássemos uma lágrima, ninguém quereria saber de nós. Mas nascemos e choramos porque há um caminho que nos guia na direcção do fim. E nós seguimo-lo, sem questionar, sem querer saber. Apenas seguimos...

sábado, abril 25, 2009

Está sol e por vezes isso é quanto basta para fazer a harmonia do mundo em que vivo. Há mundos onde o sol faz a guerra e a loucura, mas, neste que é meu, o sol faz o equilíbrio das pessoas e das coisas; faz a semente, a música na relva, as borboletas tontas sobrevoando as curvas da paisagem, as palavras sem fôlego para contar o que cada um viu naquela manhã ainda hoje inacabada…

sexta-feira, abril 24, 2009

Um dia, passei por alguém que me olhou, captando num breve movimento o olhar que eu fazia vaguear pelo brilho da rua, e esse instante tornou-se inesquecível, irrepetível. Só aconteceu naquele pedaço de luz suspenso, que adquiriu o tamanho de um grão, tão imenso como o universo. Passaram anos e nada de semelhante voltou a acontecer. Por isso, é esse olhar, ainda, que me acompanha sempre que tento ver para lá de mim.

quinta-feira, abril 23, 2009

Não sei como me ocorreu a ideia, nem quando, nem a que propósito, mas desde 18 de Janeiro passado que escrevo todos os dias um apontamento e o coloco neste espaço. De início, tive dúvidas sobre a oportunidade da iniciativa e sobre a minha disposição para manter a sua regularidade, mas com o passar do tempo tenho vindo a sentir que, afinal, parar cinco minutos por dia e organizar uma ideia tornou-se um acto higiénico que não dispenso.

quarta-feira, abril 22, 2009

GP deixou de existir no dia em que ERB chorou a sua morte. Foi como se não interessasse o dia do óbito propriamente dito, mas apenas o dia em que a notícia foi recebida. A morte de GP resumiu-se ao caudal de lágrimas de ERB e aos seus protestos de palavras feridas e amargas. Chorou tanto que só me restou acompanhar a sua dor sentando-me a seu lado e chorando também.

terça-feira, abril 21, 2009

Um romance pode ter a força de uma explosão cósmica, pode nunca começar e nunca terminar, pode estar sempre a crescer, sempre a manifestar os seus intentos frustrados e contradições, sempre a rodopiar num tempo impossível, porque é essa a verdade que tem para contar. E nós, leitores, havemos de morrer mil vezes nas suas páginas. E mil vezes havemos de renascer.

segunda-feira, abril 20, 2009

Ontem, quando passeava de carro na brisa ventosa de domingo de manhã, entre Ribeira Grande e Pico da Pedra, ocorreu-me uma ideia que me pareceu digna de escrever no tempo. Um pensamento capaz de superar todas as circunstâncias. Depois de chegar a casa, escrevi a frase neste blogue e programei-a para ser publicada a 1 de Janeiro de 2100, às 10h00.

domingo, abril 19, 2009

O “eu” é a minha consciência individual, restrita, confinada, enquanto o “outro” é a minha consciência maior, aberta, abrangente. Sem o outro, não posso conhecer-me, não posso decidir-me, pensar-me ou revelar-me. É a consciência maior proporcionada pelo outro que me fundamenta como pessoa, me torna responsável e me posiciona no mundo.

sábado, abril 18, 2009

É no rosto que tudo acontece: o susto, o medo, a surpresa, a alegria, o cálculo, o sofrimento, a realização, o desejo. É o rosto que transporta as dúvidas, as interrogações, os pressentimentos, as desavenças, as contrariedades, as inibições. É no rosto que tudo se esconde e se revela. Para de novo se esconder. Ou revelar.

sexta-feira, abril 17, 2009

Mar, campos verdes, nuvens baixas, árvores despidas, cheiro a cão e galinhas salpicando a paisagem, tudo faz parte de mim. Até a sombra escorregadia e disforme, mistério de calor sem origem, preces ouvidas de madrugada. Entram-me em casa, sorrateiras, ameaças esguias, deslizando na penumbra rente às vidraças. Almas desavindas para me cercar.

quinta-feira, abril 16, 2009

A paz vem de um mar que bate eternamente contra as pedras, vem da montanha do Pico, lá em cima no chão da alma, no abismo dos pensamentos menos prováveis. Não há nada que perturbe o mistério da vertigem, a neblina dos átomos no infinito, o ruir do tempo a cada instante por entre os olhos caídos da memória por contar.

quarta-feira, abril 15, 2009

Como superar a banalidade das palavras? Como aumentar-lhes o sentido para além do sentido que têm? Por onde andarão antes de serem escritas? E depois de serem lidas? Que valerão as palavras que ninguém usa? E as muito usadas? Cansar-se-ão? Haverá zangas e amuos entre elas? Como fazer perguntas sem recorrer ao seu uso?

terça-feira, abril 14, 2009

Morrerei quando Lisboa morrer, cansada de luz, palavras barrocas, comboios de vento, pombos a arder. Morrerei com Lisboa, mais o seu rumor brando em dias de sol. Morrerei, de voz perdida, no dia em que Lisboa desabar por entre fúrias sem causa sepultadas no Tejo. Morrerei Lisboa duas vezes. E morrerei.

segunda-feira, abril 13, 2009

Teimam em permanecer junto de nós como as plantas, a chuva, as casas antigas, os insectos. Não são visíveis, vagueiam talvez nos fundos da terra ou pairam nos altos do fogo, mas continuam presentes, são palpáveis e concretos nas nossas vidas, acompanham-nos para todo o lado. Não interessa se falam, ou se fazem silêncio. Estão aqui, agora, sempre. São indiscutíveis.

domingo, abril 12, 2009

Descem sobre mim em bandos de negro e debicam-me, devoram-me, em fúrias tresloucadas de vingança. Esvoaçam, saboreiam-me, discutem-me nas suas rotas de céu descarnado. Fico em transe, ao sol, morrendo em partes, em tiras e fios de sangue sobre a poeira. E por cada pedaço de mim que se desfaz há um tempo novo que começa.

sábado, abril 11, 2009

À medida que os dias vão passando, o que nos une torna-se cada vez mais denso de leveza. As brechas entre os poros vão desaparecendo. Entre os braços, as bocas, os ouvidos, os narizes, os dedos, os olhos. Olho-te e vejo-me com outro cabelo, outro rosto, mas sempre eu, sob um sol intenso. E contigo deve acontecer o mesmo. Está no teu sorriso.

sexta-feira, abril 10, 2009

As águas do futuro inundam o fogo da terra em nome do Deus cósmico que nasceu das brumas e se refez em átomos sobre as planícies sem fim quando andávamos de mão dada à procura dos sons da infância vindos de fundos incalculáveis e tudo era névoa e cor e paz inquietante, até desaparecermos além para regressar.

quinta-feira, abril 09, 2009

Há sempre um prazer maior à nossa espera porque há sempre uma dor maior algures à nossa espera. Não há forma de experimentar um prazer maior sem antes atravessar uma dor maior. E não há forma de escapar com um prazer maior sem depois sucumbir a uma dor maior. Sobre a qual o ciclo se refaz. Para que prazer e dor jamais se esgotem.

quarta-feira, abril 08, 2009

Quem vê passar uma pessoa idosa não imagina a dor que vai no seu íntimo. Não imagina o somatório de desencantos e humilhações de que se fez a sua existência. Viu de certeza morrer familiares, amigos, colegas e sabe que deve preparar-se para o dia em que chegará a sua vez. Talvez por isso prefira nem se aproximar dos que mais ama, a fim de sofrer menos na hora da partida…

terça-feira, abril 07, 2009

E.M. perguntou-me, por diversas vezes, hoje, qual tinha sido o dia mais feliz da minha vida. Respondi-lhe que tinha sido o dia do seu nascimento. Insistiu para que eu indicasse outro, mas não consegui. O dia em que veio ao mundo foi, que me recorde, o único em que não senti qualquer brecha, lapso, vazio, hesitação, sombra. Foi o dia íntegro da plena luz solar.

segunda-feira, abril 06, 2009

Porque a família não tinha dinheiro para o seu sustento, foi parar a casa de alguém que prometeu empenhar-se na sua educação. Aos dez anos, desistiu de estudar e passou a prestar serviço doméstico a troco de cama e comida. Nunca casou. Com o tempo, tornou-se indispensável. De uma fidelidade canina. Viu morrer toda a gente na casa. E lá morreu também.

domingo, abril 05, 2009

A voz enovelava-se-me em fios, emoções, ideias. E quando ouvia alguém falar, tudo à minha volta ainda mais se emaranhava, numa infindável quantidade de relações que me embrenhavam e desnudavam. Fui-me tornando incapaz de dizer fosse o que fosse. O ruído dos outros bastava-me. A escrita surgiu como forma de resolver assuntos comigo.

sábado, abril 04, 2009

“Quando em jovem ia na rua, as pessoas olhavam-me como se algo de errado se passasse comigo”, dizia-me há dias AGM, com um olhar tão magoado que até parecia que o sangue lhe saltava dos olhos. Já não tinha, decerto, mais lágrimas para chorar. “Havia gente que me apontava e insultava. Por isso me tornei no que sou hoje. Sou como sou para me defender dos ataques de que era alvo”.

sexta-feira, abril 03, 2009

O universo não tem dimensão. Como tal não é mensurável. O que procuramos medir é apenas o espaço ilusório que o movimento provoca. Se tudo está em constante movimento e mutação, não se justifica que a matéria seja delimitada, fixa, permanente. O que os nossos olhos alcançam e a nossa mente tenta compreender são expressões efémeras da realidade absoluta que é a vertigem cósmica.

quinta-feira, abril 02, 2009

No momento em que fiz um breve compasso de espera antes de atravessar a passadeira para peões, reparei numa pessoa que varria a rua e que teve o cuidado de se desviar e se deter para não importunar os meus passos, quase conseguindo dar a ideia de não estar ali, para que todo o caminho me pertencesse. Aconteceu há algum tempo, mas ainda hoje me faço acompanhar pelo seu rosto magro, introspectivo, cabisbaixo.

quarta-feira, abril 01, 2009

Olhei para duas pessoas que estavam paradas junto de um carro na rua e, de repente, ao observar as calças de uma delas e a maneira como estavam usadas e surradas, dei comigo a reflectir sobre mim e sobre a minha forma de estar na vida, as minhas contradições e o modo como fui agindo e reagindo ao longo dos anos. A seguir, desatou a chover, meti-me em casa e não pensei mais nada.