sábado, fevereiro 28, 2009

A morte dos pais é o que em nós não se explica. Como um buraco com origem desconhecida cuja linguagem não alcançamos. E há um projecto que se ergue sobre esse indizível que nos é legado. Um caminho que trilhamos com os olhos na noite em frente. Até que algo se mova. Eternamente.

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

De repente, fiquei com a casa cheia. Vieram os sons, os passos, as perguntas, os risos, as portas fechando e abrindo, os ventos cruzados, a correspondência trazida pelo carteiro. Não chego para tudo. O telefone toca, L. espera que eu lhe dê atenção, K. encosta-se à porta de vidro, B. e N. olham-me de olhos baixos. E, aos poucos, a alma refaz-se.

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Mudar as rotas do pensamento para inventar brechas, sobreviver à oportunidade da descoberta, correr na penumbra do sonho e da esquiva, experimentar o fogo e a água (não evites as facas que voam desalmadas na direcção do teu peito). No fim, dir-me-ás o teu nome, acenar-me-ás um destino, e será minha obrigação calar o amor.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Por vezes, quero falar de Deus e não sei como. Talvez seja de mim que quero falar, talvez seja o meu “eu” que desejo encontrar, esmiuçar, aprofundar. Mas em vez de me escalpelizar, desato em reflexões sobre a Paz, até me perder nos labirintos dos seus muitos caminhos. Depois, volto a Deus… e fujo de mim, mais uma vez.

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Duas pessoas adultas e duas crianças, sentadas à mesma mesa, mastigavam o almoço com rostos coloridos na zona de refeições de um hipermercado sem história. Via-se que eram uma família feliz, pela forma silenciosa como se olhavam e transmitiam a ideia de que podia desabar tudo à sua volta que nem assim interromperiam o momento que os unia

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Criou quatro crianças e dedicou-se a mil e uma tarefas para lhes garantir o sustento. Nas casas da vizinhança, lavava chão e roupa, escrevia cartas para emigrantes, tomava conta de bebés, acudia a gente de idade, debulhava milho, cozia pão. De regresso a casa, deitava-se ao lado de um corpo encharcado em álcool. E sorria sempre, quando me contou isto.

domingo, fevereiro 22, 2009

Amanheço num aeroporto sem ter a certeza se estou de partida ou de chegada. Há gente que passa com malas e bagagens, gente que acena e verifica as horas, enquanto me arrasto por corredores com pensamentos que nem eu sei explicar. Alguém me pergunta onde fica o quiosque de jornais, indico com o dedo… e continuo a minha marcha para o nada.

sábado, fevereiro 21, 2009

A dor exaurida na secura das paisagens. Os rostos da morte infinita escritos nos olhos incapazes de revolta. Os sons poeirentos na distância de cores descarnadas. Um corpo de ossos sob a pele sem significado. Os chifres das árvores no coração. Toda a gente de boca seca em farrapos e gritos e mais gritos que não se ouvem. África num livro de Sebastião Salgado.

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Cada pessoa que vemos passar na rua, a pé ou de carro, leva a intenção de ir a algum lado: a casa de um familiar, a uma loja, a um restaurante, à igreja, a uma repartição pública. E todas esses projectos mentais se cruzam num tempo definido e palpável para dar corpo ao mistério que faz a vida das cidades.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Não sei como acontece, mas é frequente sentir que amo, sem excepção, todos os que me rodeiam. Geralmente, sucede quando não sei o que fazer e me ponho a observar as ruas vazias na tarde ferrugenta. Nessas ocasiões, dificilmente, encontro o ponto da claridade em torno do qual as coisas fazem sentido. E, então, o amor é o que me resta…

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

Uma criança de meses erguia-se nas pernas irrequietas, salivando e esbracejando, ao mesmo tempo que abria muito os olhos na direcção da vidraça, onde se via um navio atracado no cais. Só tinha olhos para o navio e para o sol que não acabava. Os pais sorriam, embevecidos, e a pessoa que veio à mesa servir-me o café dizia: “cara linda, cara linda…”.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Às vezes, damo-nos conta de que existem outros em nós. Sons, movimentos, brilhos fugazes que se expandem e crescem em zonas imprevistas. Recebemos notícias de longe, perguntando o que fazemos, por onde andamos, qual o nosso destino. Há murmúrios próximos, nítidos, vincados na pele. Pedimos licença para entrar, sentamo-nos… e estamos perante uma nova família.

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Olho para EM e percebo que pode pertencer-me, ou não; que pode estar em mim, ou em outra pessoa; que pode ter nascido comigo, ou ainda nem ter acontecido. EM é a hipótese de um tempo que vem de todos os tempos, a hipótese de uma irrazão. Quando EM me olha, tudo começa de novo, desde um lugar que não conheço, nem imagino.

domingo, fevereiro 15, 2009

Quando K. partir, sei que vou recordar por muito tempo a forma como os seus olhos me observavam, com laivos de autonomia, numa clara tentativa de compreensão do meu ser total. Sempre que eu chegava a casa, K. rodeava-me, aproximava-se, tocava-me, punha-me questões do estilo – porque estiveste tanto tempo sem aparecer? – e eu sem saber o que dizer-lhe…

sábado, fevereiro 14, 2009

Estar com L. dói quase tanto como não estar. Quando me encontro a seu lado, penso que esse momento não se prolongará por muito tempo, o que logo me reduz o prazer que sinto na sua companhia. Outras vezes, esforço-me por aproveitar integralmente a sua presença, o que me deixa com um sentimento de tal plenitude que até me custa a acreditar que seja verdadeiro.

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Sempre que L. vem de França para estar comigo é como regressar a casa todos os dias, com E. e D. aos pulos no corredor, por entre os quartos, cantando, rindo, brincando, pedindo-nos para dançar, participar em peças de teatro, jogos, conversas, palhaçadas, tanta coisa. E quando chega a hora de E. partir… acaba-se o sentimento de regressar a casa todos os dias.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Ontem, estava eu na brincadeira a esbracejar com E. imitando uma briga e, a dada altura, reparei que havia lágrimas nos seus olhos. Inadvertidamente, fizera-lhe uma pequena ferida no lábio superior. Senti um vento gelado na alma. Que ainda não passou. Como se eu tivesse mil feridas iguais a doer em mim.

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

As suas mãos transformam a escrita. Por mais equilibrada que esta pareça, MPN olha-a e, como se nem precisasse de reflectir sobre o que vê, encara-a de um outro ângulo, disseca-a, desmonta-a, descobre-lhe contradições, incongruências, inutilidades. E, de repente, há um mundo novo que surge dos escombros à nossa frente.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

O meu coração arde sem palavras. Quando elas me faltam não sei para onde me virar. Busco no vazio, remexo, sujo-me, não me entendo. Volto ao princípio e as coisas apresentam-se-me confusas, sem préstimo. Dou uma saltada ao fim e deparo-me com um caos semelhante. As palavras fazem parte da ordem do amor.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

O meu corpo alimenta-se dos outros, cresce com eles, faz-se da matéria que lhes pertence. Nada no outro, por isso, me pode ser estranho. O outro é o meu eu sem barreiras, é mais do que o meu eu. É no outro que me transformo, que aprendo, que construo a casa dos meus dias infinitos.

domingo, fevereiro 08, 2009

Quando é domingo, o dia arrefece, acinzenta, encolhe. Pode até fazer sol e andar gente na rua, que nem assim as coisas se tornam coloridas e alegres. O domingo é o dia da semana em que as borboletas desabam contra a lã pegajosa dos vidros. E tudo cede, em redor, tudo se desintegra.

sábado, fevereiro 07, 2009

Passo os olhos pelo mundo com as suas horas sem remédio e derivo para outra coisa, outro sítio, em busca de algo em que me reveja. Por mais que desça às funduras, nada resta que me possa fazer renascer. Há a febre, a escrita, o torvelinho da arte… mas as pessoas, meu Deus, como poderão viver sossegadas no seu labirinto de dor?

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

O vulto de L. surgirá, ao longe, no vão da porta que abre e fecha automaticamente sempre que passa alguém, e nessa altura sentirei o sol depositado sobre as coisas (mesmo que chova a potes lá fora), sentirei ventos e relâmpagos colorindo as rochas do céu na manhã fria de fogo. E nada mais haverá.

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Abre-me a porta e olha-me com um ligeiro sorriso, a que adiciona um esgar de reflexão sobre o que tenciona dizer-me e que já havia congeminado ainda antes de saber que eu apareceria lá em casa. E deixa-se ficar diante de mim, barrando-me a passagem, hesitante, como se tivesse uma ideia suspensa dos olhos sem luz, quase como se não me conhecesse…

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Há pessoas que me abalam de tal forma que só me apetece segui-las sem olhar para trás. Mas segui-las sem deixar de ser eu. Segui-las apenas na paixão intelectual que despertam. Segui-las não saindo do lugar onde me encontro e não pondo em causa a segurança em que me estribo. Segui-las, apenas, no meio de risos sem fundamento.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Passávamos tardes inteiras a conversar no adro da igreja da terra onde nascemos. Risos, brincadeiras, novidades, rumores, tudo vinha ter connosco. Não precisávamos de ir mais longe. Bastava-nos ficar ali, vendo gente, imaginando coisas, sonhando o mar que nos viajava. O centro do mundo era onde tínhamos os pés.

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Perto da minha casa, vive AM. Há dias, trouxe-me a foto de uma criança de meses com uma flor nas mãos rechonchudas. Sempre que me vê, AM acena, atravessa a rua e precipita-se na minha direcção, como se tivesse medo de que eu lhe escapasse. Mas paro sempre para ouvir o que tem para me dizer, mesmo quando as suas palavras tropeçam e se repetem e se negam e se reencontram…

domingo, fevereiro 01, 2009

Hoje estive a almoçar à beira-mar com C., P. e R. O tempo passava sem se dar por isso. Ou dava a ideia de nem passar, tal a acalmia de cada instante em que nos revíamos. Conversámos do que vai sucedendo pelo mundo e cá no meio, enquanto mirávamos as ondas revoltas, que por pouco não invadiam terra nas suas explosões de vento e claridade