terça-feira, novembro 30, 2010


TELEFONEI a Emin e a sua voz saiu-me doce e arredondada pela distância. Voz sem mácula, objetiva e clara como um dia de sol que vem ao meu encontro sem nada exigir em troca que não a luz simples e transparente de uma causa depurada, íntegra, plena, sem contornos. Este brilho tocando a penugem da alma.

segunda-feira, novembro 29, 2010

QUANDO NOS PREPARAMOS para o pior, para o inconcebível, para a dor maior que se possa imaginar, conseguimos viver o dia a dia com uma noção reforçada de segurança e tranquilidade porque apreciamos o que sucede à nossa volta, independentemente da sua mediania. Até por estarmos conscientes da ameaça que pende sobre o tempo que virá.

domingo, novembro 28, 2010

SE NÃO TEMOS prazeres quotidianos, nem amor para partilhar, nem amizades para conviver, nem particular interesse numa atividade profissional, a razão última de existir pode ser o desejo de conhecer e compreender. Sem esperar mais nada. Sem querer mais nada. Porque nada pode suplantar a perspetiva de ver mais longe, sempre mais longe.

sábado, novembro 27, 2010

O ANTES, O AGORA E O DEPOIS conjugam-se para acertar a minha vida, para a moldar de novo, para a construir uns anos adiante. Como num filme, com lógica própria. Nada semelhante à sensatez comum. Imagino algo e, mais tarde, realiza-se o que imaginei, sem que eu tenha dado um passo por isso. É como se acontecesse apenas porque o pensei.

sexta-feira, novembro 26, 2010

QUANDO TODA A NATUREZA brilha, sobre colinas, muros, árvores, doirando telhados e pedras de ribeiros, que sentido fazem as minhas tormentas? Que vale uma das dores que sinto comparada com a de uma folha caída que o sol arrasta na paisagem? Quem sou eu junto a um caule de erva, junto a um gato esgueirando-se na luz atrás de comida?

quinta-feira, novembro 25, 2010

QUE DIREITO TENHO de criticar quem não concorda comigo? Se critico é porque creio que a melhor ação é aquela que tem em conta o meu entendimento sobre os problemas. Mas que motivos tenho para considerar que o meu entendimento, a minha forma de pensar, de analisar, de perspetivar, são melhores do que os de outras pessoas?

quarta-feira, novembro 24, 2010

LEMBRO-ME com frequência da noite em que num quarto se cumpria o velório de JDF e num outro ao lado eu me deixava seduzir por GS. O calor do seu corpo inebriava-me de uma forma incontível. Perto da meia-noite, quando já quase ninguém passava na rua, não aguentámos mais e fomos dar largas à imaginação na varanda da casa...

terça-feira, novembro 23, 2010

HÁ UMA FORMA de gostar que se sente, que está à superfície, que se vê, que transborda, que se relaciona com pessoas concretas, e há outra forma de gostar, que é oculta, funda, cavernosa, que não se expõe, que não se sabe onde assenta e que até parece não ter motivos para existir. É nesta segunda forma de gostar que o amor frutifica.

segunda-feira, novembro 22, 2010

DOIS PÁSSAROS brincam na berma da estrada e fazem-no com tal entusiasmo que é como se o centro do mundo se confinasse ao pequeno círculo que os rodeia. Vou de carro e procuro não perder os seus voos esfusiantes. Mas logo que os ultrapasso tenho a nítida sensação de que o centro do mundo deixou de existir e que a estrada me conduz ao vazio.

domingo, novembro 21, 2010

TENHO EM MIM o sofrimento de quem me trouxe ao mundo. Era tanto o seu pesar que acabou por crescer e transbordar para a minha vida. Mege sabia que assim haveria de acontecer, e avisou-me, mas na altura não compreendi o alcance das suas palavras, quando afirmava que, um dia, eu haveria de chorar lágrimas e havia de chorar sangue…

sábado, novembro 20, 2010

A IMAGEM de uma pessoa muda radicalmente quando a vemos em casa de roupão, chinelos, voz rouca, cabelos desgrenhados, arrastando olhares pelos móveis. É como um filme em que lhe coubesse interpretar aquela personagem. Depois, chamam-na de dentro e ela vai nas sombras, até se sumir, deixando-nos a sós com a visão do outro ser que carrega.

sexta-feira, novembro 19, 2010

O PENSAMENTO é infinito porque infinitas são a sua intensidade, densidade, profundidade, nos caminhos percorridos por ideias em deriva, hesitação, diálogo, conquista. Infinito em cada um e infinito na soma de todos. Condição que transborda para a perspectiva que temos das gentes e das coisas e lhes atribui uma dimensão e noção ilimitadas.

quinta-feira, novembro 18, 2010

A ESPERANÇA desceu à terra no seu caixão de chumbo e nós vamos com ela, sob a ardência do sol, com vista a iniciarmos outra forma de ser. Subimos a rampa de acesso à zona onde nos abriram a cova e sabemos que algo tem ali um começo. Rimos e dançamos sobre as ruínas da história. A festa das nossas lágrimas.

quarta-feira, novembro 17, 2010

AS FOTOS SÃO DE UM TEMPO em que fugíamos para o meio da paisagem. Fugíamos do medo, da fúria, da loucura. Escapávamos de nós como quem escapa dos outros. Mas hoje vejo-as, as fotos, e não encontro nelas constrangimentos. Os rostos sorriem para a câmara como se nada se passasse, como se o tempo houvesse trazido outra coerência ao seu brilho.

terça-feira, novembro 16, 2010

OCULTO-ME por trás das palavras, e quanto mais me oculto, mais coesa parece ser a narrativa. Oculto-me por trás de tudo o que encontro. Mas nem sempre tenho sucesso. Então, ponho-me a aprender outras maneiras de não me verem. Sigo o movimento, avanço, mesmo quando não há chão à minha frente, e acabo por descobrir novos recantos invisíveis.

segunda-feira, novembro 15, 2010

VEJO um filme, leio um livro, observo um quadro, e o que vejo e leio e observo passa a acontecer na minha vida, entra em mim com uma força maior, toma posse dos meus sentimentos, das minhas ideias, das minhas visões. Transforma-me, confronta-me, incentiva-me. Depois, é como se aquilo nascesse todas as manhãs ao lado do sol…

domingo, novembro 14, 2010

AS TUAS BOTAS percorrendo o soalho, a tua mão deslizando sobre o papel, os teus olhos luzindo no dia pouco iluminado. Oiço e calo-me, não me mexo, para poder ouvir a minúcia de cada movimento na tua alma, de cada sopro nas tuas ideias, de cada imanência nos teus desejos. Dizem que nos parecemos em fotos. Suspeito que nos distingue a forma de rir.

sábado, novembro 13, 2010

ESCREVO ENQUANTO espero por alguém, enquanto tomo café, enquanto faço compras, enquanto estou nos lavabos, enquanto conduzo, enquanto EMR patina à beira-mar, enquanto o céu atravessa o voo dos pássaros, enquanto uma voz me chama além. Escrevo mais do que respiro, mais do que como, mais do que durmo. Talvez seja uma forma de amar.

sexta-feira, novembro 12, 2010

NO ROSTO VAI a distância toda do mundo que os olhos alcançam e não alcançam. Vai o pedido, o sonho, a caminhada, o momento, a detonação, o espaço por definir e realizar. O rosto é a doença tomando conta da matéria que lhe diz respeito. Solidão, cansaço, desesperança.

quinta-feira, novembro 11, 2010

IR A CAMINHO de casa, quando Ling e Emin não estão, é como ir a caminho de um país estrangeiro, onde os galos não despertam manhãs nem os gatos se aninham nos telhados. Chegar a casa e ter a lâmina fria percorrendo os cantos, como se houvesse uma traição pressentida, como se apenas me restasse adivinhar.

quarta-feira, novembro 10, 2010

ESTE É O TEMPO em que a cidade morre de tristeza nos meus olhos. Nem uma folha ou fio de luz mexem nas ruas por onde passo. Além, a noite afogando a dor nas suas vestes escuras de abandono. Paro, a ver se alguém me pergunta ao que venho, ao que vou. Mas não. A cidade vive submersa no seu estertor.

terça-feira, novembro 09, 2010

NÃO POSSO pedir a ninguém que me substitua nesta tarefa de escrever. Não posso dizer "toma aqui o meu lugar enquanto vou ali dormir uma soneca". Não posso descansar deste fluxo de ideias constante como uma condenação. Ninguém me pode substituir no encargo de escrever uma criança a chorar na sala de espera de um hospital.

segunda-feira, novembro 08, 2010

ENCONTRAR na fila para a caixa registadora do hipermercado uma pessoa que estudou comigo na juventude, tomar café a pensar no eco das suas palavras, ouvir o ruído vago de passos e carros de compras, observar a vida numa concha de infindas partículas de tempo, sair para o sol, deslizar na estrada com Ceef e a sua trompete. Ser outono.

domingo, novembro 07, 2010

PERGUNTO-ME cada vez mais se alguma vez terminarei estes apontamentos. Entraram de tal forma no meu quotidiano que já não sei se conseguirei sair deles, se conseguirei deixar de os pensar, escrever, sentir, viver, seguir com atenção a qualquer momento do dia. Sem estas palavras sistemáticas, não imagino em que sombra me protegeria.

sábado, novembro 06, 2010

HÁ DIAS em que as formas rodam mansamente. Dias nem longos nem curtos, finos, de uma só cor, agudos, sem sinais particulares. Dias em que uma voz me acompanha pausada e densa para me contar o sentido das coisas inalcançáveis. Dias secos, leves, lúcidos, transbordantes de buganvílias no instante de bater cada hora.

sexta-feira, novembro 05, 2010

É FÁCIL DESAPARECER de um lugar e continuar lá como se nada tivesse acontecido. Basta não conviver, não aparecer nos cafés, nas lojas, nos espaços públicos. Ao não sociabilizarmos, deixamos a ideia de que residimos em outro sítio e de que só pontualmente surgimos onde realmente vivemos. Podemos chegar ao ponto de andar por todo o lado e não nos verem.

quinta-feira, novembro 04, 2010

NINGUÉM nos pode socorrer. Somos arautos do egoísmo, da violência, da morte. Destruímos o sol e a alegria que traz a esperança. Não merecemos amanhecer todos os dias. Que Ashtiani nos encomende ao seu Deus. Em nome das pedras que se fizeram para amar. Caem sobre nós todas as injustiças e pecados da Terra.

quarta-feira, novembro 03, 2010

FULGEM VERDES os teus olhos no mar que avisto. E, se não há mar, é nos teus olhos que o procuro, ainda, no seu fundo de transparências sinuosas. Em que outra dimensão teria possibilidades de o encontrar? E, se acaso não tenho os teus olhos, Tenho o mar à minha frente sem fim, onde recebo as tuas ondas de frescura brava.

terça-feira, novembro 02, 2010

A ARTE ROMPE fronteiras, supera limites, é mal educada, derruba medos, refaz espaços, propõe ideias. Interroga-nos, perturba-nos, agita-nos, repensa-nos, redimensiona-nos, arrasa-nos. Não permite o meio termo, não contemporiza, não hesita, não recua, não olha para os lados. A arte destrói tudo à sua passagem.

segunda-feira, novembro 01, 2010

PARAR NUMA ESTAÇÃO de combustível em dia feriado, de manhã, para escapar ao determinismo do tempo. Entrar, pedir café, vaguear com os olhos pelas prateleiras e compreender os sumos, bolachas, pastilhas elásticas, jornais, revistas. Reflectir sobre a função da máquina Multibanco. Ouvir a música incansável brotando do tecto. Perdoar tudo.