terça-feira, agosto 31, 2010

UM CORPO ESGUIO recorta o brilho da tarde fazendo vibrar a passagem das horas. Cruza a perna, olha de viés, ajeita o cabelo, mostra-se de perfil, inclina-se na direção da luz, observa as unhas, ergue o pescoço fino. Pouco sorri. Dos seus olhos saltam faíscas de impaciência branda. De vez em quando levanta-se e vai à porta ver.

segunda-feira, agosto 30, 2010

DE BRAÇO DESCANSADO sobre o expositor de vidro, vai cantando uma melodia popular, olhando para quem chega e para quem serve. Nota-se que tem a pretensão de dar nas vistas. A sua voz transborda de sinais impacientes e rebeldes. Bebo o meu café e evito interpretar o que os meus olhos veem. A manhã é sempre demorada quando acordo.

domingo, agosto 29, 2010

SEMPRE QUE SAIS, o vazio do mundo invade-me. Mesmo que a tua saída seja por um simples dia, ou por uma simples hora. É um vazio maior do que toda a realidade que sou capaz de alcançar. Talvez seja o medo de que não regresses. Ou os grilos não emudeceriam nos campos, nem as telas se desprenderiam das paredes sobre o chão da minha morte…

sábado, agosto 28, 2010

EMR VAI CRESCENDO de forma visível. Quando à noite se deita para dormir, noto como o seu corpo quase ocupa toda a cama. Apetece-me tocar-lhe, afagar-lhe os cabelos e os joelhos e dizer-lhe que tenha confiança. Apesar de eu saber que a vida está repleta de incongruências, não deixo de perspetivar o seu futuro.

sexta-feira, agosto 27, 2010

EIS O FOGO que tenho para escrever, o alcance, a desilusão, a ignomínia. Palavras que me saem, para doer mais longe nos espaços de água que revolteiam ante os meus olhos. Procuro um sinal de aura, gota de saudade na serpente do riso. Firo-me de secretos desejos. Depois, hei-de tombar as ideias e preparar a tranquilidade da partida.

quinta-feira, agosto 26, 2010

QUANTAS VEZES HÁ NO MAR, sob aquele manto imenso de névoa cujo fim não se descortina desde o movimento inicial? Vozes que são gemidos de embalos e ruídos ténues não tragados pela distância. Tantas vozes como estrelas, gotas de ar, luzes apontadas ao além. Vêm do futuro e entregam-se ao esquecimento.

quarta-feira, agosto 25, 2010

ENTRAMOS EM CASA e ouvimos como que gritar, chamar, lamentar, para além das sombras que transbordavam do verde ao fim da tarde, quase noite. Era um protesto fundo, atravessado de dor, um queixume que se estendia através do céu quente e pesado. Um chorar sem lágrimas fazendo estremecer cada minuto da nossa hesitação.

terça-feira, agosto 24, 2010

HÁ UMA UNIÃO que apenas se torna alcançável pelo amor. Se este não existe, não há vontade nem formalidade, por férreas que sejam, que ajudem a aproximar as pessoas, por mais ancestral e empenhado que seja o compromisso, por mais vinculativo, por mais sincero, por mais convicto. Nada substitui o amor e a união que este proporciona.

segunda-feira, agosto 23, 2010

TENHO DENTRO DE MIM TODA A LOUCURA do mundo – vejo colinas de endiabradas luzes multicolores, transporto candelabros cósmicos em remoinhos de chuva, sinto que me circundam atroadores uivos de pássaros – e porém sigo passo a passo na lama dos dias, avanço meticulosamente, com a noção funda do que me compete a cada instante…

domingo, agosto 22, 2010

O QUE PRETENDO na vida é apenas produzir ficção de forma articulada com investigação académica, tendo em vista credibilizar a escrita e, ao mesmo tempo, acrescentar liberdade e prazer à pesquisa científica. Ainda não sei exatamente em que moldes o farei, nem sei se o conseguirei fazer, mas sei que esse é o percurso que trilho.

sábado, agosto 21, 2010

DE REPENTE ACONTECEU-ME passar a saber o que não sabia, passar a compreender o que não compreendia. Não imagino como pode ter ocorrido semelhante salto. Dei por mim a contar o que nunca contara, a ver o que nunca vira, a imaginar o que nunca imaginara. Senti-me outra pessoa. O caminho à minha frente era líquido e não se lhe divisava a curva seguinte…

sexta-feira, agosto 20, 2010

ABREM-SE OS ARES do dia como peixes vogando no azul e a liberdade cresce em mim até ao início da palavra. São rumores o que sinto ardendo nas águas mansas que passam rente à sombra da janela em que te debruças para assistir ao meu julgamento e condenação. Erguem-se fúrias do outro lado do tempo. Erguem-se voos para definir o traço da rota que seguirei.

quinta-feira, agosto 19, 2010

CONTA que, desde criança, lhe batiam quando trabalhava e quando não trabalhava, quando entregava o dinheiro que ganhava e quando não entregava, quando chegava a casa a horas e quando não chegava, quando se comportava bem e quando se comportava mal. Conta que lhe batiam com cinto, chicote, cana, pau. Não se cansa de contar e sorri muito enquanto conta…

quarta-feira, agosto 18, 2010

É POSSÍVEL ENTRAR NUMA FRASE, através do seu sentido, e ter acesso a milhões de outras, desvendando recantos, desbravando túneis, descobrindo mundos insuspeitos nas profundezas. Mas também se pode escalar frases, subindo-as como se fossem degraus, até ao mais alto inalcançável.

terça-feira, agosto 17, 2010

AS PESSOAS FALANDO no ar cálido da noite, rindo, contando coisas, trocando opiniões, observando quem entra e quem sai, comentando pedaços de vidas, algumas sentadas lado a lado, outras fumando cabisbaixas… e, contudo, a morte ali mesmo à beira, sossegada, matreira, calculista, espreitando pelo canto do olho.

segunda-feira, agosto 16, 2010

O DIA ENFUNA de gente que dá a ideia de não saber de onde vem. É como se chamassem por alguém nos confins do cinzento, como se não acreditassem na rota das nuvens para as suas lucubrações. Digo que não sei de nada, que não sou de onde pareço, mas não me ouvem. Há cada vez mais olhos à minha volta, entrando sem cessar.

domingo, agosto 15, 2010

CÉU ESTRELADO SEM FUNDO, barulho leve de ondas, respiração do mar, expectativa de areal estendido, montes recortados da noite, fogo das luzes com distância. Poucos metros atrás, vozes na esplanada, risos como estalos, música suspensa de aves, retinir de copos, passos de quem serve às mesas. Escuridão abrindo-se.

sábado, agosto 14, 2010

O SOL ESTAVA baixo, rente à erva do areal, pronto para ser debicado pelos patos que cirandavam em redor dos dejetos da ribeira desaguando. Crianças pulavam e corriam nos respingos do sal, enquanto a gente adulta jazia estendida como cadáveres que remoem assuntos de outros tempos. Nem uma ameaça de onda se via. Só cheiro azul a podre.

sexta-feira, agosto 13, 2010

PERTENCER a uma terra é viajar e saber que se voltará. Viajar sem destino, entregue à sorte de Deus, encontrando gente de todas as partes com quem comunicar e conviver, criando intimidades novas, redesenhando projetos e vidas, no desejo de ir sempre mais longe, para estar, enfim, cada vez mais perto do lugar que nos espera.

quinta-feira, agosto 12, 2010

O QUE IMAGINAMOS faz parte integrante do real. Se assim não fosse, a imaginação escaparia à realidade, podendo subvertê-la ou até eliminá-la, uma hipótese absurda. Se a imaginação é a única forma de chegarmos a algum sítio, usemo-la com esse fim e cheguemos lá, cheguemos a esses distantes universos cósmicos, cujo número incalculável só a imaginação pode determinar…

quarta-feira, agosto 11, 2010

UM DIA HEI DE PARTIR no teu encalço para a Califórnia, algures onde depositas as botas junto aos ponteiros do relógio em silêncio de causa. Hei de perguntar por ti, hei de bater aqui e ali na rota árdua do teu nome, do teu fervilhar de ideias, da tua forma de rezar filosofias. Quanto aos desenhos de infância perdendo-se…

terça-feira, agosto 10, 2010

ESTIVE A ESCREVER um texto para o conjunto a que dou o nome de Digressão e preocupou-me a facilidade com que as palavras me saíam dos dedos. Um texto repentino, sem emendas, lógico, aberto, dúbio, cuja ideia principal eu havia anotado poucos minutos antes e que nem imaginava por que ângulo devia abordar. Bastou-me começá-lo…

segunda-feira, agosto 09, 2010

VOU ESTUDAR todo o dia, como se não houvesse luz exterior nem olhares para a janela onde corre a vida de todos os momentos. Nada me deterá. Nenhum fluxo, nenhuma ordem, nenhum receio, nenhum convite. Sinto a completa proteção que me cabe neste Verão inquieto de claridades bruscas e ventos fugazes. Para que a noite me venha servir o jantar rente ao sal das pedras.

domingo, agosto 08, 2010

HOUVE UM TEMPO em que pensei escapar à realidade pela escrita, abrindo espaço à ficção pura. Desatei a escrever na tentativa de demonstrar a plausibilidade dessa via. Durante anos, alimentei-me dos seus desafios, surpresas, dificuldades. Por fim, compreendi que a única realidade existente era a das palavras que escrevemos. Sem possibilidade de fuga.

sábado, agosto 07, 2010

DEVO AUSENTAR-ME antes que o céu caia sobre as palavras que anunciam a tempestade em que me debato desde a nascença. Para começar de novo no âmago das visões com a liberdade comprazendo-se. Antes que me atinjam no silêncio das noites por dentro do qual a eternidade se vai formulando…

sexta-feira, agosto 06, 2010

SEPARAÇÃO é dor, é perder metade do que havia em nós. É não ter porto, nem meio para chegar adiante. É cair, aos tropeções, de rosto ferido e inchado, não podendo dizer “bom dia” ou “até amanhã”. Corpo transido, vergado, como acordar sem forma na língua de um país que não nos viu nascer.

quinta-feira, agosto 05, 2010

QUANDO VIAJO NÃO ESTOU em parte alguma. Fico em suspensão entre um sítio e outro. Posso parar e decidir fazer outra coisa, mas se assim proceder deixarei de estar em movimento para me ocupar de qualquer assunto diverso do inicial. Quando vou de viagem, nada me perturba porque não ocupo nome nem espaço.

quarta-feira, agosto 04, 2010

VAI ALGUÉM PELA RUA em direção a algum lugar. Pensa, sente, tem medos, alimenta esperanças, embora não transpareça uma mosca no acerto dos seus passos. Em toda a parte, há milhões de pessoas seguindo para algum sítio, com algum objetivo, alguma ideia, algum sonho. E ninguém alguma vez imaginará o contorno dos seus mundos imensos.

terça-feira, agosto 03, 2010

ENQUANTO ESCREVO, devora o alimento que lhe pus à disposição, olhando-me de soslaio por um breve momento como se pretendesse captar a eternidade de que fazemos parte. O seu olhar de viés há de acompanhar-me por todas as viagens em que carregarei na consciência o peso de que não falo.

segunda-feira, agosto 02, 2010

ERA UMA RUA estreita, ligeiramente curvada, com casas pequenas e uma igreja ao fundo acinzentando a tarde. Alguém falava na direção de uma cabeça e de um torso debruçado numa janela alta, entre risos e gestos. Depois, quem estava na rua encostou-se à parede, pôs-se em pontas de pés e trepou até colar a sua boca à boca que esperava em cima.

domingo, agosto 01, 2010

LOGO À NOITE, sonharei que vou pelo mundo fora, com uma ou duas pessoas amigas, de mochila às costas, como quem segue a pé, sem planos, sem percursos pré-definidos, sem curiosidades específicas. Só viajar de acordo com a inclinação das nuvens, com os impulsos do sol e das tempestades. Viajar com os olhos imersos nas cidades esquecidas.