sexta-feira, abril 30, 2010

No centro da praça toca uma música que nunca ouvi, mas que julgo conhecer. Miscelânea de sons brotando de um encantamento sem necessidade de intervalos para respirar. Quem passa leva a melodia rodopiando dentro de si. Nas esplanadas, nos degraus do fontanário, nos passeios, é o que nos une naquela hora do sol.

quinta-feira, abril 29, 2010

Volto a um aeroporto. Não consigo viver longe daqueles corredores intermináveis a caminho da luz nas vidraças sem pátria. Passam vultos em correntes de murmúrios por uma apoteose de passos. Pergunto aqui e ali qualquer coisa que me ajude a chegar ao destino. Olham-me ausentes e hesitam na resposta. Mas não desisto. Num aeroporto, tudo me fala.

quarta-feira, abril 28, 2010

A paisagem corre lenta nos areais moles da brisa, quando os pássaros descem junto à minha sombra, rasurando o pó dos meus sinais, esboçando planos de sol nas minhas asas. É tudo vago e leve na planície dos olhos que me antecedem. São pássaros que liberto cortando céus na direcção de outros, soprando ventos de um desejo até ao fim.

terça-feira, abril 27, 2010

Deixam na cozinha os tachos brilhantes dependurados, os panos descaídos, as balanças em repouso, as mesas com a fruta ao centro e as toalhas esticadas nas linhas delicadas dos filetes bordados, a loiça nos armários, os talheres, os recados na porta do frigorífico. E vão-se de vez. Para que de repente tudo faça sentido.

segunda-feira, abril 26, 2010

A escrita é também o seu próprio vazio. É um tempo de maturação, de espera, de convulsão, de lentidão com dor. Para ser materializada, precisa de beber nas águas da tranquilidade e de navegar nas labaredas da agitação. É o equilíbrio entre estas duas formas de sobreviver que lhe dá a inquietude que todo o poder não dispensa.

domingo, abril 25, 2010

Olhamos para uma miniatura e o que vemos é o calor da nossa insignificância. Uma casa diminuta, um boneco minúsculo, um carro do tamanho da palma da mão dizem mais de nós do que os objectos de dimensão normal. São a nossa verdade condensada em algo que nos é alheio, mas que nos reproduz com minúcia, visão integral.

sábado, abril 24, 2010

Na zona de refeições de um centro comercial o sol entra pleno nas vidraças gigantescas e inunda o ruído das vozes que flutuam. A claridade é como um mar mole e pastoso que envolve toda a gente. A meu lado, duas crianças comem a felicidade do mundo. Dos seus olhos saltam risos de transparência e palavras sobrepostas com madrugadas silvestres.

sexta-feira, abril 23, 2010

O universo não tem mistério nem segredo. É matéria em remoinho dentro de matéria em remoinho. Não pode ser outra coisa. É uma realidade dinâmica sem medida tão evidente como a complexidade sem medida do nosso corpo. O universo a que pertencemos (há milhões de outros) é um ponto dentro de uma infinidade de pontos.

quinta-feira, abril 22, 2010

Sigo na estrada iluminada pelos faróis do carro que rasgam a noite escura como se faz ao ventre de um monstro definhando exangue no silêncio das paisagens inacessíveis. Ao longe, cresce o negrume do sol redondo e um dedo olha-me, aponta-me, persegue-me. Paro o carro no meio da rua, não penso, não procuro soluções. Deixo-me ouvir na distância.

quarta-feira, abril 21, 2010

Não leio Borges, nem Faulkner, nem Shakespeare, nem Coetze, nem Pessoa, nem Roth, nem Queiroz, nem essas literaturas obtusas que resfolegam nos estertores das livrarias ou dos hipermercados como se fossem cemitérios onde cadáveres espumam descabelados suplicando com as cabeças fora dos túmulos. Leio Capote, Hamsun, Tchekov…

terça-feira, abril 20, 2010

Um dia que tenhamos oportunidade de descobrir seres residentes em planetas extra-solares, depressa haveremos de concluir que se resumirão a um fenómeno passageiro, à semelhança do que sucede com os humanos. Drama é o carácter precário e superficial da existência, por mais que se consiga prolongá-la, por centenas de anos, ou mesmo milhares.

segunda-feira, abril 19, 2010

A palavra é um poder. Talvez o maior poder. Está mesmo acima do poder da ideia, que precisa da palavra para se tornar palpável e efectiva. A palavra diz e, ao dizer, torna real o que afirma, faz acontecer ou dota da capacidade de acontecer. É esta “capacidade de acontecer” que lhe concede todo o poder. Maior do que o poder da palavra só o poder da palavra escrita.

domingo, abril 18, 2010

Hoje, pensei o meu dia, analisei as últimas semanas, procurei organizar o que me vai surgindo nas ideias, vasculhei tempos mais recuados, e deparei-me sempre com frases ocas, expressões vazias, contextos desprovidos de nexo. É a primeira vez que me acontece desde que iniciei estes apontamentos. Aceito que assim seja. Não me violentarei.

sábado, abril 17, 2010

Existir na escrita. Depender da escrita todos os dias. Do seu bafo quente, do seu olhar vago, do seu ritmo fundo. Transformar cada momento numa frase, num texto, num romance sem limite de páginas nem tempo. Fazer tudo em função da escrita. Conjecturar, calar, prever, rascunhar, projectar. Para morrer borbulhando em cada sílaba de espaço.

sexta-feira, abril 16, 2010

Os mundos não me elucidam na escavação das cores. A profundidade evolui para lá do eco que me chega da infância. A fuga dos rostos sem dono. Os brilhos. Aconselham-me a partir, como se não houvesse bagagem para as palavras. Só eu e a ideia de outras eras que se vão anunciando. Indicam-me o caminho, por entre despojos.

quinta-feira, abril 15, 2010

Por que me haviam de seguir? Para me compreender? Para me projectar, calcular, programar? Para estudar os passos que darei na fuga de milhões de vozes em direcção à sombra reclinada? Só me atormenta o sangue, a vibração dos pensamentos, a promessa gravada na superfície dos tambores que magoam a pele junto ao rio descendo.

quarta-feira, abril 14, 2010

Em circunstância alguma se pode, ou deve, dizer que o pior já passou. Mesmo que pareça que sim, não convém que nos iludamos. O pior está sempre na primeira esquina à espera de nos ver surgir distraidamente. Ao aperceber-se da nossa aproximação, avança sem contemplações, só nos restando enfrentá-lo com a experiência do que antes suportámos.

terça-feira, abril 13, 2010

Somos livres, não temos regras, somos como as torrentes de lume que avançam nas ruas do tempo. Não vimos de parte alguma, nem pretendemos chegar onde quer que seja. Nascemos na chuva das tardes, comemos laranjas e bebemos vento, até chegarmos onde as rãs desfilam nas avenidas. Chamem por nós e digam que nos adivinham, digam que nos queimam os olhos.

segunda-feira, abril 12, 2010

É bom ter duas vidas, ou mais, nem que seja pelo prazer de fazer parte de um novo corpo, olhar para trás e ver o nosso tempo antigo, enfezado e despido, aos tropeções por entre nesgas e rumores dissipando-se. Quanto mais vidas temos mais escapamos à morte, por obra de outros corpos ludibriando-a...

domingo, abril 11, 2010

Andei à procura de N. por toda a casa, sem resultados. Vi nas cadeiras, no sofá, por baixo de armários, nas estantes, nada. Tinha-se escondido no quarto de EMR e estava em profundo sossego, fingindo que dormia, em cima da cama, a ver se me vergava o coração e tolerava que lá continuasse. Só faltou que me dissesse: "Deixa-me ficar aqui até EMR chegar".

sábado, abril 10, 2010

A escrita é um lugar onde se entra e do qual não se volta a sair. É uma terra com sons, cores, brilhos, cruzamentos, perigos, movimentos intermináveis. A escrita multiplica-se por escritas, levando à perda de noção da origem. Escritas brotam de escritas como águas rebentam de espumas faiscando na desproporção do eterno.

sexta-feira, abril 09, 2010

Quando vou andando pelas ruas vazias de tanta gente, sem planos, sem rumo, sem destino, sem vontade, e me ponho a pensar no que me espera, apetece-me arrastar ainda mais os pés, apetece-me adiar adiar. Olho para quem passa e sei que não me vêem. Sou uma espécie de vulto disforme que se desloca como uma sombra sob o húmus de casas tombadas.

quinta-feira, abril 08, 2010

As rugas precisam de ser amadas, como as pessoas, os gatos, as tulipas. Acompanham-nos em permanência, revelam-se com a idade, apesar de existirem desde sempre na escrita da nossa alma. Compreendem o que sentimos, adivinham o que burilamos. Trazem-nos pela mão, qual brinquedo que se leva para o jardim ou para a guerra. As rugas.

quarta-feira, abril 07, 2010

Ao ver-nos lado a lado numa foto, no reflexo de uma montra, numa passagem de espelho, caem-me dúvidas em cima e ando às voltas para tentar saber como é possível semelhante amor. Chego a perguntar-me se amor será mesmo esta banalidade plena e absurda que sentimos a cada instante. Mas se amor não for isto, então que será?

terça-feira, abril 06, 2010

A vida, hoje, não é mais excitante do que no tempo em que o Homem vivia em cavernas. Pelo contrário, no tempo das cavernas havia a adrenalina de se poder ser devorado a qualquer momento por algum mostrengo, ao passo que hoje nem isso. Hoje, tudo decorre ordeiramente na selva das cidades sobrevoadas por anjos de cândidas melodias.

segunda-feira, abril 05, 2010

Os muros por detrás dos quais as pessoas se ressentem, escondem, protegem, culpam. Os muros que rodeiam as casas, as ideias, os corações, os gestos, os planos, os desejos. Tudo acontece com estes muros que dividiram o mundo em fossas, pocilgas, currais sem cura e sem saída para o esplendor de nenhuma galáxia. Os muros. Nós, os muros.

domingo, abril 04, 2010

As palavras são fotografias carregadas de cor nos olhares cruzados, são revisões de contornos nos ecos de insinuações, são caminhos transviados por maquinações, são ameaças e vilipêndios de andrajos, são escalpes retocados para o nosso espectro. As palavras são ardores que não se dizem. Não fazem parte. Vêm de outras vozes.

sábado, abril 03, 2010

Doía ver a tua cabeça pequena, meu amor, sobre a relva húmida e gélida, quando a noite cobria as casas com o seu manto atravessado de sonhos apagados. Claro que não pensei, não pesei todos os factores no momento em que decidi que havias de ter um corpo, um rosto, um olhar. Nessa altura, ainda me faltava perceber. Agora, não tenho palavras para explicar a solidão que nos invade.

sexta-feira, abril 02, 2010

As palavras transformam a realidade: entram por frinchas; vasculham cantos; penetram corpos; atravessam ruas, parques e montes; mudam cores, formas, dimensões, lugares, sentimentos, desejos; reconstroem passo a passo, laje sobre laje, viga contra viga, como numa história inventada para divertir. As palavras são o diabo.

quinta-feira, abril 01, 2010

Distribuo a alma pelos dias, desfaço-me em pó, corto as veias em tiras, jogo com pedaços de corpo, acumulo restos de unhas, ofereço rolos de cabelo. Por vezes, tenho tanto para escrever que nem sei por onde começar. Anoto ideias umas sobre as outras num caldeirão de dedos e teclas. Até que o animal explodido me salta diante dos olhos.