sábado, outubro 31, 2009

O que escrevo é o que me aquece a vida. Aqui, neste espaço sem tempo, sou mais do que penso e desejo, sou mais do que alguma vez poderei alcançar. Cada palavra sai-me à medida de um corpo assassinado, com a raiz estendida para as vozes do sangue correndo no vento de expectativas e humilhações.

sexta-feira, outubro 30, 2009

Duas pessoas conversam numa sala de estar. Têm pouco mais de trinta anos. Vê-se que são amigas pelo ar despreocupado que salta dos seus gestos e palavras. Uma delas ri muito, quando a outra recorda uma brincadeira qualquer de infância. Mas, daí a minutos, faz-se silêncio, como se de repente pressentissem que o futuro as pode separar.

quinta-feira, outubro 29, 2009

Como manter a capacidade de reflexão quando se está em turba, em correria, em polémica? Como descer ao fundo de nós quando não se tem espírito de concentração e de clausura? Como ir ao limite quando não se consegue fechar os olhos ao que nos rodeia? A escrita só permite silêncio, recato, afastamento…

quarta-feira, outubro 28, 2009

EMR sai da escola e desce a rua comigo, até ao parque de estacionamento, que atravessamos em silêncio, enquanto me dou ao trabalho de ir contando os passos lentos que damos e procuro escolher mentalmente o restaurante onde almoçaremos. Depois de nos sentarmos e escolhermos o que vamos comer, penso na forma como ocuparemos a tarde.

terça-feira, outubro 27, 2009

Levaram-te como uma folha seca, como um papel sem nome, quando praticamente já te resumias a um pedaço de carne ressequida com dois olhos enterrados no tempo. Foste sem protestar, ao contrário do que era teu hábito, sem pestanejar, sem um ai, sem uma palavra de adeus ou de último esclarecimento. Foste. E foste.

segunda-feira, outubro 26, 2009

Dividir as pessoas em masculino/feminino é uma ofensa à integridade e dignidade de cada um. O ser humano será livre quando não houver género no amor, quando não houver receio de género no amor, quando não houver preconceito de género no amor. Felicidade haverá... quando não houver género.

domingo, outubro 25, 2009

A escrita vale a pena quando se torna o nosso próprio corpo, quando não se distingue da carne que somos, quando arrisca os nervos e a alma, quando trespassa o coração com o veneno dos dedos, quando vai à frente para vencer o medo, quando exige de nós tanto como o estômago e as fezes.

sábado, outubro 24, 2009

Muitas vezes me pergunto que memória terá EMR de mim, no futuro, uns bons anos depois da minha morte. Que traços do meu carácter recordará de forma especial. De que aspectos da minha personalidade terá saudades, ou não. Não chega a ser uma preocupação, nem condiciona o meu comportamento, mas não deixo de me interrogar…

sexta-feira, outubro 23, 2009

Para onde ir quando tudo colapsa? Para onde ir quando tudo, mesmo tudo, deixa de fazer sentido? Quem nos trouxe até aqui? Onde começámos? Por que havemos de seguir a manhã ou a noite? Que aprender agora? Fizeram-nos de quê? Como esquecer o que vimos e ouvimos? Para onde nos levam? Quem somos?

quinta-feira, outubro 22, 2009

Há música que se faz de uma mão deslizando sobre o rosto da nossa infância. Mão calosa, com rugas, macia, áspera, doce, inesquecível. Mão que nos percorre os olhos de adormecer e avança no labirinto do sonho. Para inventar a melodia das vidas que atravessaremos.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Chegar a uma cidade é começar uma nova vida, encetar novos passos, fazer novas descobertas, assimilar novos conhecimentos, com novas coisas pela frente sempre prontas a serem desvendadas. Uma cidade não acaba. E está sempre a recomeçar, de cada vez que alguém chega a uma das suas artérias ou prédios.

terça-feira, outubro 20, 2009

Comove ver alguém de janela, à espera de quem lhe prende o coração. Passa muita gente na rua, gente de todos os tamanhos e condições, mas só uma pessoa lhe interessa. Os seus olhos resistem, por isso, num esforço de horas, até chegar o instante em que há-de passar quem lhe traz a vertigem.

segunda-feira, outubro 19, 2009

Quando o rio atravessa a noite e segue por entre as luzes da cidade que não dorme, eu sento-me adiante no reflexo da estrela marulhando e recuso-me a ver, recuso-me a contar. Recuso-me. Para que o rio atravesse o tempo, reconstruindo a cidade nas suas deambulações de martírio e sonho.

domingo, outubro 18, 2009

Sobre a literatura há pouco para dizer. E o que há não adianta grande coisa. O que há na literatura é muito para escrever, para pensar, para investigar. Como se fosse necessário voltar ao princípio, sempre, independentemente das circunstâncias. A palavra escrita nunca pode deixar de estar na linha de partida de um tempo, de qualquer tempo...

sábado, outubro 17, 2009

Sentas-te no sofá, de perna cruzada, a olhar-me, parecendo rir e chorar ao mesmo tempo. Em palavras nítidas e concludentes, explicas, recordas, admites que não tiveste hipóteses. Comovo-me com a tua história. Morreste há mais de vinte anos, mas continuas real e palpável no odor, nos gestos, no brilho de pele...

sexta-feira, outubro 16, 2009

O Pico emerge todos os dias em mim. Mesmo quando lá não estou, penso nos seus momentos, no que estarão as pessoas a fazer, nos carros que andam nas estradas, nos restaurantes com ruído de talheres, nas zonas balneares abandonadas no Inverno, nas nuvens que circundam a montanha, no vento e no mar que elevam a ilha nos céus.

quinta-feira, outubro 15, 2009

Ninguém nos lembrará depois dos sinos, dos acenos, das palavras de amarga dor, quando seguirmos sem propósito na demanda das coisas cujo nome está por dizer. Ninguém virá connosco reconhecer o futuro. Nem uma lágrima subsistirá, de todas as que derramaste sobre o meu corpo.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Quem escreve com a preocupação de ser lido é condicionado por aquilo que pensa que os outros poderão pensar acerca do que escreve. E entra num redemoinho de ideias do qual nunca mais se livra. Só há uma maneira de sair desse inferno: fazer da escrita um instrumento de reflexão pessoal.

terça-feira, outubro 13, 2009

Porque a vida é uma oportunidade única, a morte não deveria ocorrer arbitrariamente, nem facilmente. Os órgãos vitais deveriam dispor de protecção natural contra ameaças à saúde e aos acidentes fatais. E, para garantir o equilíbrio demográfico, os nascimentos também deveriam ter os seus processos de bloqueio…

segunda-feira, outubro 12, 2009

Ler à noite na cama proporciona-me a mesma sensação física de quando na adolescência lia desalmadamente antes de dormir. A luz é a mesma sobre a mesa-de-cabeceira. O calor das cobertas. A escuridão lá fora. O vento deslizando nas sombras das paredes. E aquele silêncio de palavras refulgentes em que a casa navegava. E navega.

domingo, outubro 11, 2009

Não poder escrever quando me ocorre uma ideia porque estou a pagar compras no hipermercado ou porque estou com alguém que encontrei casualmente na rua e cuja conversa seria indelicado interromper é suficiente para me levar às lágrimas pela certeza de que não serei capaz de recordar mais tarde o que pretendia registar.

sábado, outubro 10, 2009

Ontem, enganei-me na hora de ir buscar EMR à saída da escola. Depois de esperar por mim, em vão, durante algum tempo, EMR dirigiu-se ao emprego de MMR, mas deu com a porta fechada. Seguiu para o restaurante onde MMR costuma almoçar e só viu gente desconhecida. Em desespero, correu para um quiosque de rua e pediu ajuda, chorando convulsivamente.

sexta-feira, outubro 09, 2009

O kitsch das hortênsias pintadas numa tela fá-las mais hortênsias do que realmente são, fá-las mais brilhantes, mais impositivas, na sua ausência de cores fortes, rasgando a paisagem. Hortênsias são algodões saltitantes na ventania matinal, marcas de olhos apontadas, rastos de dedos amolecidos. Para que mais nada se saiba.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Será anunciado hoje o prémio Nobel da Literatura. Em nome de quê? Em nome do dinheiro (não há prémios em nome da Literatura). Sobretudo do dinheiro resultante da venda de muitos e muitos livros por esse mundo fora. Façanha de um comité que está longe de poder garantir a sua imunidade a interesses.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Um romance existe muito antes de ser escrito. Tem corpo e alma, consciência, sensibilidade, inteligência, narrativa, palavras, diálogos, entrecho, muito antes, sequer, de alguém adivinhar que um dia lhe caberá a tarefa de reproduzir o que um número infindável de vozes lhe irá sussurrando ao ouvido…

terça-feira, outubro 06, 2009

Não agredirás. Porque não consinto, porque estou aqui, porque haverá sempre algo a impedir o teu avanço. Ardo em febre, olhando-te para lá de códigos e medidas. Respiro a intenção que te adivinho e verifico o rasgão inexplicado no solo junto aos teus pés. Podias ter contado a dúvida que carregavas. Não precisavas de ter fugido.

segunda-feira, outubro 05, 2009

Pensar confunde-nos com a água, faz-nos descer ao âmago sem regras, conduz-nos à claridade junto à qual as mãos prevêem a sombra, empurra-nos para lá da aflição, afasta-nos da terra e dos seus ardores sem motivo. Pensar é a descoberta do imenso obscuro. Qual mentira escrita sobre o papel que não chega.

domingo, outubro 04, 2009

Não dizer é uma possibilidade, uma dignidade. É o direito de ponderar, maturar, pesquisar, conjecturar. Para ir crescendo nos anos. Uma questão de aprofundamento das visões. Não dizer é comunicar connosco e, melhor ainda, com os outros. Sem palavras. Sem ruído. Para avançar no labirinto das inteligências sem nome.

sábado, outubro 03, 2009

LMP telefona-me e diz que esteve a falar com alguém que lhe lembrou que cada um vai morrendo à medida que os outros vão partindo deste mundo. O vazio causado pelo desaparecimento de familiares e amigos é o buraco que a mão da morte nos traça na alma. Depois, chega o dia em que já não há ninguém para se finar diante dos olhos com que nascemos…

sexta-feira, outubro 02, 2009

Vivo numa casa com uma placa a anunciar que está para venda. Na parede exterior há marcas de falta de tinta desde que lá embutiram uma caixa de correio. Por vezes, tocam na campainha, abro, mas não se vê ninguém. Para iludir o silêncio das noites, sintonizo uma estação de rádio e deixo-me adormecer ao som do que vai passando...

quinta-feira, outubro 01, 2009

Quando algo desaba há uma construção ao contrário que na sua perda de lógica leva tudo à frente, como um esplendor que parte em busca do nada, sem dar tempo de reflectir, nem de correr atrás de alguma coisa desaparecida no barulho monstruoso das ruínas amontoadas junto à reserva da consciência.